Turismo, arqueologia e literatura
Análise Antropológica da Construção da Memória Coletiva em São Nicolau, Rio Grande do Sul

Tourism, archeology and literature
An Anthropologic Analysis on Collective Memory in
São Nicolau, Rio Grande do Sul

Ceres Karam Brum[1]

Resumo: Este artigo aborda o processo de elaboração da memória coletiva sobre as Missões, na atualidade, em São Nicolau, a partir das narrativas produzidas sobre o seu passado colonial, enquanto imagem mitificada e estereotipada do mesmo, atentando às articulações entre os referentes históricos, arqueológicos e literários em suas utilizações turísticas e políticas, a partir de uma análise antropológica destas representações.

Palavras-Chave: Turismo. Missões. Memória. História. Arqueologia. Literatura.

 

Abstact: This article fucuses the process by which collective memory on the Missions is constructed at present in São Nicolau, from mystified and stereotypical images brought by colonial past narratives. To accomplish this task the author makes an anthropological analysis of historic, archeological and literature records.

Key-words: Tourism. Missions. Memory. History. Archeology. Literature.

Considerações preliminares

A experiência missioneira platina, também denominada Os Trinta Povos das Missões, ocorreu durante os séculos XVII e XVIII, nos territórios atuais do Rio Grande do Sul, Paraná, Argentina, Uruguai e Paraguai e correspondeu à tentativa hispânica de integrar os territórios e seus habitantes, enquanto possessões coloniais (SCHALEMBERGUER, 1997). Apesar de ser uma experiência extremamente controvertida e estudada (KERN, 1982), relaciono as Missões à integração colonial (FLORES, 1983) efetuada pelos jesuítas, a serviço da monarquia castelhana, através do aproveitamento e utilização de elementos do ethos dos habitantes originários guaranis na imposição do catolicismo, da fidelidade ao rei e aos valores coloniais nas Reduções e, posteriormente, nas Missões (MELIÁ, 1978).

A partir de 1609, tendo como referente a experiência de catequização intentada pelos jesuítas a serviço da coroa portuguesa, na Bahia em 1549,  começaram a chegar ao Paraguai (KERN, 1993) os primeiros missionários jesuítas representantes do colonialismo castelhano. Com o objetivo de catequizar e reduzir em pequenas aldeias os autóctones da região, privando-os do contato com os demais colonizadores e evitar, por um lado, a dizimação que estava sendo provocada pela exploração dos encomenderos (aqueles que tinham trabalhadores indígenas à sua disposição por determinação do Rei) e, por outro, o apresamento indígena efetuado pelos bandeirantes paulistas, os jesuítas intensificaram sua ação missionária em diferentes frentes de expansão.

Na região do Guairá, entre os rios Paranapanema, Paraná, até a Foz do rio Iguaçu, foram criadas as primeiras reduções entre 1610 e 1628. Concomitantemente, entre 1610 e 1627, na região do Paraná-Uruguai, à margem direita do rio Uruguai são também fundados povoados. Num segundo momento, em virtude das sucessivas investidas bandeirantes, e das dificuldades de catequização entre os guaranis, alguns jesuítas e guaranis reduzidos seguiram para o sul e na região do Itatim criaram povoados entre 1631 e 1633, bem como em direção à margem esquerda do rio Uruguai, conhecida como região dos Tapes, já no atual território do Rio Grande do Sul, onde também fundaram povoados entre 1626-1634, com a introdução do gado na região. Estes povoados se desestruturaram definitivamente pela ação bandeirante, em 1640.

Esta primeira fase reducional (1610-1640) de conversão à fé católica se caracterizou por parte dos jesuítas pela imposição de uma organização que pretendia a defesa dos interesses expansionistas hispânicos, pontuando a ocupação do território ao utilizar os indígenas como defensores mobilizados militarmente e a transição do seu modo de vida, tentando frear, entre outros, seu nomadismo itinerante ao mantê-los nas aldeias, e suprimir as bebedeiras, a poligamia e o canibalismo ritual. (KERN, 2005).

A partir de 1682, são criados os Sete Povos das Missões: São Borja (1682), São Nicolau, São Miguel e São Luiz Gonzaga (1687), São Lourenço (1691), São João Batista (1697) e Santo Ângelo (1706), que pertenceram à segunda fase desta experiência no Rio Grande do Sul – os últimos dos trinta povoados a serem fundados – vinculando os autóctones guaranis e seus territórios à Espanha, em oposição à frente de expansão lusa na América Platina.

Nesta segunda fase, imperava o modelo de índio que já estava reduzido à fé católica (QUEVEDO, 2000) e as Missões se caracterizavam pelas casas coletivas, pela utilização da língua guarani, por instituições administrativas de cunho hispânico como o Cabildo (KERN, 1982), ocupado pelos caciques como lideranças indígenas, pela expulsão dos pajés enquanto elemento da religiosidade guarani originária e sua substituição pelos padres jesuítas, pela especialização da mão de obra e a divisão da propriedade dos meios de produção em coletiva (tupambaé) voltada à auto-suficiência e a produção de excedentes para a economia colonial e particular (amambaé) que possibilitava a subsistência da família.

A estes aspectos que garantiram a permanência dos guaranis nas Missões e o fortalecimento dos povoados, enquanto experiência colonial, se somaram outros, como a arte e arquitetura barroca na construção das cidades através do modelo espanhol em que a praça e a igreja se constituíam nos principais espaços de sociabilidade, permitindo o rígido controle por parte dos padres que identificavam a missão à terra da promissão (BRUM, 2001). Este imaginário jesuítico incorporado como mito e que permanece vivo, sendo apropriado ainda na atualidade, está expresso nos escritos do Pe. Antônio Sepp, que foi um dos protagonistas da experiência missioneira platina.

A adequação dos escritos bíblicos, por parte dos jesuítas, com a justificação da Missão como Terra da Promissão, perdurou até a desestruturação dos Sete Povos, que ocorreu em virtude das disputas ibéricas por estes territórios, a partir de 1750, por ocasião das demarcações do Tratado de Madrid, o qual determinava a troca da Colônia do Santíssimo Sacramento (possessão lusa) pelos referidos povoados. A Guerra Guaranítica (1754-1756) correspondeu, neste contexto, à recusa por parte dos guaranis de efetuar a referida troca e entregar as terras das Missões (Gadelha: 1999). Desta disputa a literatura regionalista (LOPES NETO [1913], 2000), a historiografia (Torres: 1996) e a memória popular (OLIVEN, 1992) enfocam a atuação da figura mitológica de Sepé Tiaraju, comandante das tropas missioneiras, morto na Batalha de Caiboaté, a quem se atribui a expressão “Esta terra tem dono!”. Esta referência atávica – o grito de Sepé, como é conhecido - vem sendo citada, ao longo do processo histórico sulino, em inúmeros episódios para justificar uma gama de atitudes que denotam a construção de representações tendentes a ressaltar a bravura dos gaúchos, descendentes do índio Sepé. (FAGUNDES, 2000).

Por seu turno, constatei (BRUM, 2005) que a memória (HALBWACHS, [1950] 1990; POLLAK, 1989) da experiência missioneira no Rio Grande do Sul vem sendo expressa de inúmeras formas: manifestações dos índios guaranis e habitantes das regiões próximas aos antigos povoados missioneiros; narrativas tradicionais de temática missioneira - designadas por folcloristas e regionalistas no Rio Grande do Sul como mitos e lendas - (LOPES NETO [1913], 2000; FAGUNDES, 2000; FIGUEIREDO, 2000; RIBEIRO 2002), produção musical e poética de tradicionalistas e nativistas (MACIEL, 2001); designação/nominação de Centros de Tradições Gaúchas e de grupos folclóricos, a publicidade veiculando as Missões e, especialmente, a exploração turística da região.

O município de São Nicolau foi construído sobre os remanescentes das edificações da Redução de São Nicolau, fundada, em 1687, pelos padres jesuítas da Companhia de Jesus, durante o segundo ciclo da experiência missioneira, no Rio Grande do Sul, em local próximo a sua primeira fundação, ocorrida em 1626 (GOMES; QUEVEDO, 2003). Em São Nicolau, a partir de um conjunto de informações acerca do passado da região, seus habitantes, a administração pública municipal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), os empreendedores de turismo e os turistas que visitam o sítio arqueológico (tombado como patrimônio nacional) expressam, de forma plural, um conjunto de interpretações tendentes à construção de uma imagem de São Nicolau que, apesar de apresentar vestígios arqueológicos do segundo ciclo missioneiro, é designada como A Primeira Querência do Rio Grande.

Para a construção destas visões sobre o passado nas Missões, concorrem as interpretações de dados históricos, arqueológicos, literários, tradições orais e vivências dos grupos citados. Relaciono o conjunto destas representações ao processo de elaboração da memória coletiva (ROBIN, 2003) forjada a partir da região das Missões.

Entendo a memória coletiva como a produção narrativa baseada na re-figuração do passado (RICOEUR, 1985), visando a construção de imagens que se desejam mostrar de si. Nas articulações tendentes à elaboração da memória coletiva em São Nicolau, o turismo se apresenta como uma importante fonte para o seu estudo, pois permite perceber um feixe de discursos sobre o passado a ser consumido no presente, através dos pacotes turísticos que se desenvolvem no município. Configura-se, assim, como uma das narrativas preferenciais para a interpretação da memória coletiva em São Nicolau.  

Narrativas cruzadas

O caminho das Missões

Segundo Barretto (2003), o turismo pode ser definido como uma atividade que implica no deslocamento e permanência temporária de pessoas para fora de seu lugar de residência, por motivações variadas e que se utilizam de serviços voltados à visitação, especialmente concebidos a este fim, que se configuram como negócio.

Os pacotes turísticos, que oferecem visitas ás Missões, o designam como turismo histórico, cultural e também ecológico. Para Santana Talavera (2003) esta modalidade de turismo abarca o pitoresco, a diversidade local, os vestígios de sociedades desaparecidas, ruínas e monumentos, museus, cidades, bem como o turismo étnico. Neste sentido, aponta para a complexidade da demanda turística em termos das aproximações das diferentes mdalidades de turismo (étnico, ambiental, recreativo e cultural/histórico).

Tal fato conduz à especificidade do enclave dos clientes potenciais do turismo cultural, que se dirigem ás Missões, cujos interesses são estimulados pela discussão ecológica da atualidade, forma de organizar as férias, sua dissociação do turismo de massa e, sobretudo, a possibilidade de oferecimento "da cultura como experiência individual que alimenta o sentimento do único e estimula uma forma de recordar aravés, de uma viagem de aventura ao passado" (SANTANA TALAVERA, 2003). O pacote turístico Caminho das Missões se inscreve nesta perspectiva:

[…] um roteiro místico/cultural de peregrinação que percorre os mesmos trajetos que ligavam os antigos povoados missioneiros que compunham o conjunto – urbano e rural - das Missões Jesuíticas [..] As antigas trilhas guaranis, os caminhos missioneiros e, depois, as velhas estradas dos tropeiros serviram de orientação para o traçado do caminho que ora se apresenta como uma jornada de peregrinação mística, ou de pesquisa, lazer ou esporte. (www.caminhodasmissões.com.br). 

Trata-se de um tipo de turismo histórico, religioso e ecológico, desenvolvido na região das Missões, a partir do estabelecimento de relação com alguns aspectos do seu passado, efetuando uma interpretação dos mesmos para oferecê-los aos peregrinos, como o projeto Caminho das Missões Jesuítico-Guaranis.

O aproveitamento dos aspectos da cultura missioneira se dá através de uma apropriação do espaço missioneiro das estradas, dos sítios arqueológicos tombados como patrimônio nacional e mundial da humanidade e demais atrações da região, e também de uma relação com o seu imaginário mítico-religioso, sua gastronomia, entre outros aspectos a que o Caminho das Missões se refere como “um modo missioneiro de ser”:

O encontro de duas culturas diferenciadas: a guarani e a européia, deu origem a um novo modo de ser, o missioneiro desenvolvido com base em uma rígida organização social e econômica que se destacou no contexto colonial. A originalidade da cultura guarani, alicerçada no solidarismo e reciprocidade encontrou nas inovações técnicas trazidas da Europa, como a escrita, imprensa, metalurgia, arte e arquitetura barroca, as condições ideais para o grande desenvolvimento alcançado. (GUIA DO PEREGRINO, p.5).

O modo missioneiro de ser, sua apropriação e comercialização pela empresa turística, se constitui na razão de ser do projeto. As atividades de peregrino das Missões iniciam com a entrega do símbolo do caminho – a cruz missioneira - e do cajado na palestra de abertura. O Guia do Peregrino se refere à cruz missioneira como um símbolo místico da região.

A cruz de dois braços se constitui em um importante símbolo utilizado, não apenas pelo Caminho das Missões, como empresa turística, mas por toda a região, uma vez que nos trevos de acesso ás cidades há uma cruz missioneira.

A utilização da cruz na região das Missões e de sua simbologia é bem anterior ao desenvolvimento do turismo e se relaciona a evangelização, remetendo a memória da atuação dos próprios jesuítas. O padre Antônio Sepp (1985 [1710], p. 191-203), jesuíta que esteve presente em dois dos Sete Povos das Missões, se refere á utilização da cruz nos seus escritos.

São Nicolau tem, como um dos símbolos do município, a cruz missioneira atravessada por uma flecha. No Caminho das Missões, a cruz de dois braços – missioneira, ao representar a fé redobrada do povo missioneiro se transforma em um símbolo místico protetor dos peregrinos.

Para Hervieu-Léger (1999) a peregrinação é uma forma de religiosidade contemporânea, individual, móvel e dinâmica em relação à fluidez da forma tradicional que prescinde de identidades e pertencimentos mais específicos. É na dialética entre as crenças individuais e incertezas do pertencimento comunitário específico que a autora relaciona sua prática a um leque vasto e liminar de motivações.

Ao evidenciar estas liminaridades nas peregrinações, Hervieu-Léger se aproxima da análise de Turner (1974) para quem a liminaridade corresponde a uma categoria conceitual que se relaciona ao exame de valores dos peregrinos nas relações entre o estado religioso e semi-religioso, propiciado pela peregrinação. A busca de simplicidade e de despojamento se caracteriza como um processo ritual de reversão de status no qual os participantes se inserem numa situação de communitas existencial (TURNER, 1974) partilhada, permitindo refletir sobre as motivações e sentidos religiosos ou não que cada peregrino elabora e transforma dinamicamente ao sabor de sua subjetividade ao longo das peregrinações, na busca de encontro consigo mesmo.

No Caminho das Missões (BRUM, 2005), as motivações são múltiplas e remetem em síntese: ao interesse em conhecer a história dos povoados jesuítico-guaranis, a diversidade cultural da região com seus costumes e tradições e a situação dos índios a serem contemplados através da caminhada e das visitações. Além disso, os turistas participam do Caminho das Missões com o objetivo de tentar reviver o passado missioneiro, o que ocorre em debates a respeito da história das Missões, bem como através da visitação dos sítios arqueológicos como atividade de “peregrinação” e ainda pelo contato com os costumes e as tradições (as peculiaridades culturais) da região missioneira e do sul do Brasil apresentadas pelas pessoas, que nela residem, e que recebem os turistas.

A primeira etapa do Caminho das Missões ocorre em São Nicolau que se constitui em um espaço peculiar no contexto dos demais sítios arqueológicos visitados, pois o município é o único no Rio Grande do Sul em que ocorreram e se mencionam as duas fases missioneiras.

Durante as explicações efetuadas pelo guia acerca dos dois ciclos missioneiros, no espaço do sítio arqueológico e no museu, São Nicolau foi apresentada como “a primeira querência do Rio Grande”, criada em 1626, correspondendo assim, sua fundação ao primeiro ciclo missioneiro no Rio Grande do Sul. O historiador Mário Simon situa a questão dos ciclos missioneiros:

Para melhor entender, é bom que sejam resumidos assim estes “ciclos missioneiros” no Rio Grande do Sul: o “1° ciclo” inicia-se com a fundação de São Nicolau, em 1626, pelo padre Roque Gonzáles e termina em 1637 com o abandono da mesma diante dos bandeirantes. Dura, portanto, apenas 11 anos. Neste curto espaço de tempo os jesuítas fundaram dezoito Reduções ou aldeias com índios reduzidos; o “2° ciclo” inicia-se em 1682 com a fundação de São Francisco de Borja, pelo padre Francisco Garcia, e termina, basicamente, em 1768, com a expulsão dos jesuítas de todas as Missões. Dura, portanto, 83 anos. (SIMON, 1984, p. 16). 

 

A menção do guia a São Nicolau, como uma redução do 1° ciclo e não apenas como do segundo (ocasião da fundação dos Sete Povos das Missões, sendo São Nicolau fundado, em 1687, segundo Simon, em local diverso, mas muito próximo de sua primeira fundação), coloca a questão da diversidade de relações estabelecidas na elaboração das identidades missioneiras e suas implicações. A referência efetuada pelo turismo no Caminho das Missões, com relação a São Nicolau, advém do fato de o município possuir ruínas missioneiras do 2° ciclo - período de construção dos Sete Povos das Missões. Assim, relacionalmente, São Nicolau é identificada externamente pelo Caminho das Missões a partir de sua 2ª fundação.

No entanto, as identidades missioneiras geradas a partir do município de São Nicolau (apesar de os vestígios arqueológicos que visitamos pertencerem ao segundo ciclo) são demonstradas em termos da sua 1ª fundação, identificando-se o atual município com o local onde nasceu o Rio Grande, como demonstra o Certificado de Hóspede Oficial do Município, em que há uma gravura do local denominando Passo do Padre, por ser onde Roque Gonzáles rezou a primeira missa. O certificado é uma representação deste local com os seguintes dizeres: “aqui nasceu o Rio Grande, em 03 de maio de 1626”.

A construção desse processo de identificação, em São Nicolau, se relaciona com a popularização da literatura regionalista. O poeta missioneiro Jaime Caetano Braum, em seus versos, menciona São Nicolau como o berço do Rio Grande:

Nem se fundava o Rio Grande

Nem o lendário Viamão,

pago era céu e chão,

Coxilha várzea e peráu,

E o Uruguai dera vau numa apoteose bravia

E o gaúcho antenascia no velho São Nicolau

A popularização destes versos e a elaboração do termo “1ª Querência” se relacionam à atuação do tradicionalismo na região, uma vez que, o nome do Centro de Tradições Gaúchas - CTG  de São Nicolau é também “1ª Querência do Rio Grande“ e está construído dentro do sítio arqueológico.

A utilização do termo “querência” na elaboração desse processo de identificação é elucidativa em termos da apropriação, enquanto via escolhida na dialética da construção do ser missioneiro em São Nicolau.

Querencia conforme Nunes (1993, p. 409) é um vocábulo castelhano, havendo para ele em português o termo querença, com a mesma significação: “o lugar onde alguém nasceu, se criou ou se acostumou a viver, e ao qual precisa voltar quando dele afastado, é o local onde habitualmente o gado pasta ou onde foi criado; pátria, pagos, torrão, rincão, lar”. Assim, o termo querência apresenta uma ligação com a terra, com costumes arraigados, dando uma idéia de apego ao chão, de pertencimento e continuidade da existência em um local como condição de sobrevivência.

A utilização de “querência” nos termos acima referidos remete à terra como fator de identidade preponderante. Não é o tempo/momento de fundação que está sendo levado em consideração na construção das identidades missioneiras, em São Nicolau, mas o espaço – a terra, a região em si como um lugar de memória das Missões, não sendo assinalado em termos de imaginário dos habitantes da cidade a diferença entre os dois ciclos missioneiros. Em termos de memória coletiva, a intenção é construir um imaginário abarcador de diversos momentos, relacionando passado e presente: 1626, fundação; 1687... edificações; e 2003-2005, turismo, relacionando os dois momentos passados.

Como em outras menções à terra nas Missões, há também aqui uma proposta de comemoração do passado missioneiro na forma de sua enunciação. São Nicolau é referido em termos de uma linguagem regional, sendo visto, ao se designar como 1ª querência não apenas como local de nascimento do Rio Grande do Sul, mas também como o lugar originário do gaúcho, conforme antes mencionado no poema, cuja recitação observei em algumas ocasiões no município.

Desta forma, ao se contrapor essa elaboração discursiva, que enfoca São Nicolau, como berço do Rio Grande e do gaúcho, como herói mitificado e cultuado, com os discursos construídos pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho sobre as Missões, há que ressaltar a coincidência entre ambos. Tanto os escritos de Cezimbra Jacques [1883; 1912], atual patrono do MTG, quanto as atividades tradicionalistas observadas, mencionam as Missões como origem do gaúcho (BRUM, 2005).

Também percebi representações, neste sentido, em locais distantes da região das Missões. Assim, interpreto que a experiência vivenciada em São Nicolau demonstra uma circularidade (GINSBURG, 2001) entre os vestígios arqueológicos/ a poesia regionalista/ o tradicionalismo/ as representações turísticas, administrativas e políticas (imagem do município veiculada pela guia e pelo prefeito em suas falas), através da interpretação de um evento passado e sua memória na construção relacional das identidades missioneira em São Nicolau.

À utilização do termo “Primeira Querência do Rio Grande”, que expressa as identidades percebidas no município em relação às demais regiões das Missões se soma a vivência do típico propiciada pelas visitas dos turistas/peregrinos ao CTG Primeira Querência do Rio Grande.

O turismo se situa como oportunizador do contato com a diversidade regional (pois veicula e explora o modo de ser missioneiro) deixando em aberto sua interpretação e corrobora com a elaboração da memória coletiva em São Nicolau. Isto se dá em termos de construção de uma imagem peculiar, a partir da utilização do 1° ciclo missioneiro como representação preferencial do município. Desta sorte, propicia aos turistas, seus habitantes e ao poder político viver o mito fundador de origem da terra gaúcha como relativo a São Nicolau.

Comemoram este passado, construindo um imaginário que se nutre, inclusive, do pertencimento acionado à ausência de vestígios arqueológicos que comprovem a primeira fundação de São Nicolau, em 1626, utilizando a visitação turística aos vestígios arqueológicos do 2° ciclo para veicular a imagem de “São Nicolau – Primeira Querência do Rio Grande”.

Lendas e causos

Além da poesia regionalista, a mitologia folclórica sobre as Missões está bastante presente em São Nicolau, sendo perceptível nos relatos dos habitantes locais que remetem a narrativas tradicionais de temática missioneira a que os folcloristas no Rio Grande do Sul se referem como mitos, lendas e causos (FAGUNDES, 2000; FIGUEIREDO, 2002; RIBEIRO, 2002).

As lendas se constituem em histórias fabulosas ou misteriosas caracterizadas pela atuação fantástica de um protagonista e se relacionam às tradições populares de um determinado grupo. Uma narrativa que transmite e celebriza o que o trabalho da memória de um grupo selecionou para glorificar e viver como mito. Neste sentido, são fontes do conhecimento da história e cultura da região das Missões, enquanto crenças e saberes compartilhados.

Os causos (NUNES, 1993) são contos, acontecimentos bizarros narrados nos galpões e nas regiões rurais do Rio Grande do Sul. Como o romance e a historiografia para Ricoeur (1985) lendas e “causos” podem corresponder à re-figuração do passado através do ato de narrar, expressando a mitificação da experiência missioneira.

Em São Nicolau, algumas destas histórias se repetem, tais como: a narrativa da santa enterrada na lagoa; o enterro de um tesouro jesuítico na “figueira do Cabildo” e as inúmeras versões acerca do subterrâneo e de um túnel existente em São Nicolau. Outras tradições orais relatadas remetem a períodos mais recentes da história do município como os relatos sobre o sobrado do capitão João Silva.

1) A lenda de São Nicolau. É uma narrativa que remete às Missões como um momento de esplendor, caracterizado pelo desenvolvimento e prosperidade em comparação à atualidade, em que São Nicolau é representada como em um momento de estagnação. O desafio de desenterrar a santa simbolicamente se relaciona com o encontro e florescimento de algum tipo de atividade que devolva ao município uma prosperidade retratada como perdida após a desestruturação das Missões. Neste sentido, penso que o turismo corresponde à representação desta alternativa frente mesmo a todas as contradições que abarca e a postura dos habitantes locais. Porém, o lento amadurecimento desta perspectiva de desenvolvimento de atividades que reconduzam São Nicolau ao esplendor passado se choca com a urgência da imposição da criação do produto turístico missioneiro e sua comercialização por parte das agências fomentadoras.

As posturas, quanto ao passado missioneiro em São Nicolau, gravitam, nessa perspectiva, entre a comemoração (Habbermas: 1990) da civilização jesuítico-guarani por parte das empresas turísticas (como no caso referido do Caminho das Missões) e a postura oposta de acerto de contas (Todorov: 2002) com o mesmo por parte dos habitantes locais que, em grande parte, criticam a estática com que se mostram as Missões.

Igualmente, passa pelas relações individualmente estabelecidas pelos turistas, que visitam as Missões, numa perspectiva psicanalítica de crescimento individual, encerradas em suas histórias de vida (Auge: 2003). Esses desdobramentos se observam a partir da mitologia produzida pela memória coletiva, que articula passado e presente, respondendo a questões importantes para o grupo social, vividas na atualidade, tais como as menções aos túneis das Missões e aos tesouros jesuíticos.

2) Tesouros missioneiros. Duas senhores entrevistadas mencionaram, que gente de fora que veio cavar, encontrou uma panela de ouro, que tiraram da figueira. Essas pessoas não voltaram mais, pois, segundo os relatos, levaram o melhor que havia – a riqueza dos padres e seus tesouros.

Provavelmente, a história acima se relaciona à memória de uma das intervenções arqueológicas efetuadas no espaço da praça central da cidade. Uma grande escavação foi realizada em 1979 (segundo o IPHAN, a maior localizada no Rio Grande do Sul) com a participação de funcionários da prefeitura e do quartel de São Luiz Gonzaga (La Sálvia, 1983). Nesta escavação, foi encontrada uma pia batismal em perfeito estado de conservação, que hoje se encontra exposta no museu arqueológico do município.

Por seu turno, as referências ao não retorno dos pesquisadores pode corresponder à visão que algumas pessoas da região demonstram dos forasteiros e da própria formação erudita dos mesmos em oposição aos saberes locais. Pode, também, se referir metaforicamente a visão negativa que os habitantes mais antigos possuem dos turistas e da desorganização que causam na pacata vida da cidade.

Efetuando uma análise conjunta de ambas as narrativas, concluo que estas demonstram duas visões que, apesar de opostas, são complementares e traduzem a mentalidade coletiva de São Nicolau, em relação ao desenvolvimento turístico da região. Se, por um lado, a narrativa que se refere ao enterro da santa pode encontrar, no turismo, a atividade que possibilitaria a ascensão de São Nicolau, através do enfoque ao passado missioneiro, por outro lado, o fato de o ouro da figueira do Cabildo ter sido achado por forasteiros (conforme mencionado na segunda narrativa) pode remeter simbólica e metaforicamente ao temor de que a presença dos turistas possa levar a destruição da cidade, já que estão de passagem e trazem um modo de vida estranho as pessoas de São Nicolau.

Apontando esta mentalidade, cabe mencionar as relações observadas no espaço do sítio arqueológico de São Nicolau com relação a seus habitantes e alguns estudantes. É preciso referir que, dentro do espaço do sítio (situado na parte central da cidade - Praça Roque Gonzales), se encontra uma escola (CIAA). O mesmo prédio abriga, ainda, o museu arqueológico e o Posto de Saúde nº2. Há ainda, conforme já ressaltei, o Centro de Tradições Gaúchas “Primeira Querência do Rio Grande” que também se situa no espaço tombado como patrimônio nacional.

O sítio arqueológico de São Nicolau não é cercado, traduzindo a filosofia do IPHAN de uma postura pautada por relações dinâmicas entre os sítios e a população local (IPHAN, 2005). Os sítios, nesta perspectiva, se constituem em espaços de sociabilidade e devem, segundo o IPHAN, ser usufruídos pela população que deve ter consciência da necessidade de preservação e de como deve portar-se no seu espaço. No entanto, inúmeras vezes observei crianças jogando bola, subindo nas figueiras e andaimes de proteção, bem como algumas pessoas transitando de bicicleta em um atalho que “corta” o sítio.

A partir da interpretação das ações observadas e das narrativas tradicionais, cabe ressaltar a existência de uma dupla mentalidade pró e contra a preservação patrimonial, em primeiro lugar, e do fomento e desenvolvimento de atividades de turismo por parte do município onde percebi uma série de contradições em termos de comportamentos com relação ao patrimônio histórico. Há muitos agentes que se representam como defensores do patrimônio, sobretudo na administração municipal. Esta é reconhecida inclusive fora do município, neste sentido, pois o IPHAN destaca a prefeitura de São Nicolau como a instituição com que melhor se relaciona nos locais de ruínas (BRUM, 2003a; 2003b).

Se, por parte do IPHAN (2005), há todo um empenho em melhorar suas relações com as comunidades das Missões, conforme um programa que propõe como uma de suas metas de gestão “Fortalecer as relações entre o patrimônio e a comunidade”, suas ações não estão sendo suficientes.

O projeto de educação patrimonial, que vem sendo implementado no município, em parceria com o IPHAN, através da prefeitura municipal junto às escolas de ensino fundamental, não abarca a população em geral e as ações desenvolvidas se restringem às visitas dos estudantes ao sítio arqueológico, não atingindo a comunidade local de forma mais abrangente. Tal fato ocasiona, por um lado, o descaso e a depredação do patrimônio histórico e, por outro, o obscurecimento de possíveis ações turísticas valorizadoras de peculiaridades que podem ser encontradas em São Nicolau, em relação aos demais sítios arqueológicos do Segundo Ciclo missioneiro.

São Nicolau possui como diferencial de patrimônio histórico, as ruínas do Cabildo, os pisos da igreja e um subterrâneo (mencionado em inúmeros estudos como uma adega). Acerca deste subterrâneo, há inúmeras tradições orais sobre os vestígios arqueológicos presentes no município que me incitaram a pesquisar sobre suas significações e sentidos, em articulação com as representações de suas possibilidades de melhor utilização turística, mencionadas pela administração municipal (BRUM, 2003a).

3) Túneis das Missões Nos relatos orais, que me foram confiados, durante os trabalhos de campo que realizei no município, duas senhoras, moradoras de São Nicolau, mencionam a existência de um túnel cuja entrada é o subterrâneo localizado no espaço do sítio. Segundo elas, a escada leva a um túnel grande e escuro, à direita, onde brincavam quando eram crianças e que foram (através do túnel) até o local onde hoje se localiza o CTG Primeira Querência do Rio Grande. Uma delas relatou, ainda, que seu pai participou dos trabalhos de fechamento da entrada deste túnel, coordenado por pessoas de fora de São Nicolau e que o fecharam, com ferro, o soldando nas pedras, pois havia risco de desmoronamento do local.

Em outro relato, uma senhora de 89 anos mencionou uma porta de ferro, que levava a um túnel e um senhor de cerca de 60 anos me falou sobre uma tampa de ferro que girava e que muitas pessoas que lá estiveram e nunca mais retornaram. Outra senhora, entre 30 e 40 anos, me contou uma lenda que ouviu quando era criança:

A lenda que eu conheci era assim: o subterrâneo tinha uma porta secreta que, quando aberta, tinha um santo virado e em cima uma faca. Se tu abrisse a porta e entrasse automaticamente essa faca cairia na cabeça da pessoa.

A Arqueologia

Arno Kern (1998, p. 12), ao se referir à experiência missioneira platina afirma que: “Pelas importantes informações históricas que contém, estes vestígios arqueológicos dão origem à produção de uma importante memória social”.

Nesse sentido, as descrições do local do subterrâneo efetuadas por viajantes, historiadores, folcloristas e arqueólogos permitem comparar as significações adquiridas nestes estudos com as tradições orais acima mencionadas e oportunizam refletir sobre a construção de múltiplos saberes sobre o passado.missioneiro e suas utilizações turísticas, patrimoniais e políticas.

 

O relato mais antigo sobre São Nicolau, após a desestruturação das Missões, é mencionado por Roselene Gomes (2003), como o do viajante Auguste Saint-Hilaire, que visitou a região em 1816, e apresentou suas considerações na obra Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821). Porém, Saint-Hilaire nada menciona sobre o subterrâneo, cuja primeira descrição é apresentada pelo historiador Hemetério José Velloso da Silveira, leitor das anotações de Saint-Hilaire, que visitou São Nicolau, no final do século XIX e, assim, descreve o subterrâneo, levantando hipóteses de sua utilização:

 

As paredes no subsolo eram guarnecidas de pedras de gres e era-o também o fundo desta cavidade. Afirmaram-nos ser essa a descida para uma galeria subterrânea, destinada aos criminosos, que aí deveriam acabar seus dias. Não acreditamos nesta versão [...]Em São Nicolau o subsolo é mais firme, mas nem por isso é de supor que no colégio dos padres houvesse existido uma masmorra subterrânea. Para os crimes como dissemos à página 26, outros eram os castigos empregados e resignadamente recebidos por índios tão submissos. (SILVEIRA, [1886] 1979, p. 234).

Krebs (1948; 2002) menciona o subterrâneo de São Nicolau referindo-se a uma prospecção arqueológica noticiada, em 1938, pelo jornal Correio do Povo, através da entrevista de Augusto Brando que estava a serviço do DPHA, na região das Missões.

Conforme já referi anteriormente, em 1979, em São Nicolau ocorreu a maior escavação arqueológica já realizada no Rio Grande do Sul, assim descritas

No levantamento de José Saia Neto, há assinalada a presença de dois pedaços de parede junto ao “subterrâneo”, o que não encontramos. Ainda nessa planta uma parte tracejada representaria a união das paredes afloradas. Nada existe que possa neste momento confirmar o dito levantamento (LA SALVIA, 1992, p. 20).

Mais adiante, ao abordar os locais utilizados como depósitos, o autor efetua uma rápida descrição do subterrâneo e da hipótese de sua utilização:

A guarda de alimentos in natura que necessitam de uma temperatura mais moderada, está no denominado “subterrâneo”, cuja entrada foi aberta através da remoção de uma pedra do teto. Escavações procedidas mostraram que realmente havia uma escadaria que levava até a sua porta principal. Comumente, chama-se a este tipo de depósito de adega, e serve para a guarda de alimentos perecíveis. (LA SALVIA, 1992, p. 24).

Após o levantamento de histórias referentes ao subterrâneo pelos habitantes de São Nicolau e região, contrapostas às descrições documentais, efetuei três visitas ao local, juntamente com uma equipe formada para este fim, composta pelo então prefeito municipal Dr. Heitor Paveglio, pelo secretário de turismo sr. Vanderlei Vieira, pelo guia turístico Andréia Maciel, o funcionário do setor de obras Rudimar Pereira e pela arquiteta Liliane Pitrowiski.

        Inegavelmente existe em São Nicolau o subterrâneo no espaço pertencente ao sítio arqueológico. As tradições orais se referem à escada que leva a um acesso localizado à direita por onde se poderia prosseguir até a altura do CTG Primeira Querência do Rio Grande, que fica atualmente separado do local de acesso ao subterrâneo por uma rua situando-se o mesmo atrás das ruínas da igreja jesuítico-guarani. No subterrâneo, não encontramos a referida porta de ferro à direita, mas uma parede onde nitidamente se percebe a colocação de cimento, como em outros locais no seu interior. Curiosamente, há na rua que separa o subterrâneo do restante do sítio uma pequena elevação próxima ao local descrito como sua porta de acesso.

A entrada que encontramos no subterrâneo se situa à esquerda da escada e conduz a uma pequena sala muito úmida e fria em que verte água do teto, formando na terra que cobre o chão marcas visíveis no formato de um retângulo bastante irregular. Constatamos a abertura de 10 cm de diâmetro referida por La Sálvia (1992) e logo abaixo da mesma uma abertura proporcional à porta de entrada que alcança a altura da metade da parede por onde percebemos desmoronamento de terra que se deposita no chão, formando assim uma pequena elevação. Na parede em frente à porta de entrada há, quase na altura do teto, uma abertura retangular que deixa a terra à mostra e o que aparenta ser uma raiz de árvore. Na parede situada em frente à abertura mencionada, verificamos a utilização de cimento.

Penso que há demonstrações claras de intervenções arquitetônicas no subterrâneo, posteriores à experiência missioneira em São Nicolau. Sobre estas intervenções não encontrei, até o presente momento, documentação correspondente. Nos arquivos do IPHAN, não há laudos arqueológicos referentes às escavações de Fernando La Sálvia e demais intervenções arqueológicas referentes a São Nicolau. Apenas encontrei uma Proposta Orçamentária de Reformas na “Antiga Adega de São Nicolau”,  datada de 3/09/2004.

Por sua vez o laudo arquitetônico (PITROVISKI apud BRUM, 2003a) apresenta as medidas do subterrâneo e estas não coincidem em totalidade com as descrições anteriores (que também não coincidem entre si), o que conduz à necessidade de esclarecimentos acerca do subterrâneo através do prosseguimento de um conjunto de estudos.

Há uma pluralidade de referências à existência de subterrâneos em prédios construídos pelos jesuítas, conforme aponta o folclorista Carlos Galvão Krebs (2002, [1948]) ao se referir às construções coloniais da Bahia. Ramón Gutiérrez e Juan Divito (1997) abordam as hipóteses de construção e relatam o processo de descoberta e restauração do mais famoso subterrâneo de Buenos Aires, sob a Manzana de las Luces cuja exploração científica foi iniciada, em 1917, pelo engenheiro Héctor Geslebin.

Os subterrâneos jesuíticos no Rio Grande do Sul se constituem ainda na atualidade em certo tabu. Há uma aura de mistério e uma grande mitificação envolvendo o assunto que é tratado pelo próprio IPHAN como crença popular a que não se deve dar crédito em nenhuma hipótese. Os poucos trabalhos existentes no estado neste sentido se situam no domínio do folclore como as inúmeras publicações sobre as lendas de túneis e tesouros jesuíticos (FAGUNDES, 2000). Os mais detalhados são obra de dois estudiosos das tradições populares: o já citado artigo de Krebs (2002) e o texto de Fernando D’Onnel e Aparício Silva Rillo, Os subterrâneos de São Borja (1991).

Considerações finais - Da História e seus usos públicos e privados

Efetuei as considerações etnográficas acima, apresentando as três narrativas cruzadas (turismo, literatura oral e arqueologia) na tentativa de interpretar a diversidade de formas com que os mitos do El dorado (BRUIT, 1991) e da Missão como Terra da Promissão (BRUM, 2005) são vividos, na atualidade, com relação às Missões Jesuítico-Guaranis, sendo utilizados na construção da memória coletiva em São Nicolau. 

O mito do El Dorado corresponde à profusão de riquezas facilmente encontradas pelos colonizadores europeus na América. Com relação às Missões, esses tesouros estariam escondidos nos “enterros” e túneis, configurando-se não apenas a sugestão da existência de tesouros, como, por exemplo, expressa a mitologia folclórica na Lenda da Casa de Mbororé (LOPES NETO, 1913), mas também a atualização da representação dos Sete Povos das Missões como integrante do El Dorado americano.

As atualizações do passado (CHARTIER, 1991) missioneiro, expressas nos mitos acima mencionados, se relaciona à utilização das narrativas no sentido da elaboração de uma aura de mistério e de riqueza simbolizada material ou “imaginariamente” relativa à memória coletiva de São Nicolau como Primeira Querência do Rio Grande e como local de múltiplas riquezas ligadas ao passado missioneiro, representado, via de regra, como denominador e dinamizador do presente.

O mito da Missão como Terra da Promissão corresponde à apologia da mensagem cristianizadora da atuação jesuítica na construção das Missões e, como decorrência, acarreta a invisibilidade (SOUZA, 1998) dos guaranis missioneiros neste processo desagregador da.autoctonia frente às benesses civilizatórias jesuíticas, ressignificadas na interpretação do esplendor das Missões no passado frente a sua pobreza presente.

Para Claude Lévi-Strauss:

Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: “antes da criação do mundo”, ou “durante os primeiros tempos”, em todo o caso, “faz muito tempo”. Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém de que estes acontecimentos, que decorrem supostamente em um momento do tempo, formam também uma estrutura permanente. [...]. Nada se assemelha mais ao pensamento mítico que a ideologia política. (LEVI-STRAUSS, 1996, p. 241).

Ao situar o mito no passado, em relação a sua atualidade presente e sua articulação com o futuro, comparando o pensamento mítico à ideologia política, Lévi-Strauss aborda a questão da eficácia do mito referendada por sua permanência ao analisar as referências à Revolução Francesa. O evento potencializa, nesta perspectiva, uma diversidade de construções de sentido que convergem na sua atualização e eficácia simbólica porque “o mito permanece mito enquanto é percebido como tal” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 250).

A experiência missioneira é representada como um momento fundador, um mito de origem que permanece presente no imaginário de indivíduos e grupos que o vivenciam através das representações assinaladas. A eficácia simbólica do mito do El Dorado e da Missão como Terra da Promissão está na tentativa da resolução de problemas presentes vivenciados pelo grupo com relação a esse passado fundador. Um passado a um só tempo glorificado e representado como traumático e liminar (TURNER, 1974).

A elaboração da memória coletiva se cinge à mensagem imageticamente forjada pelos grupos ao se auto-representar, demonstrando seus anseios, interesses e contradições, tendo como referente histórico as Missões em suas diversas e convergentes mitificações. Tal como a utilização assinalada das duas fases missioneiras, com a proposital inversão significada em São Nicolau, ao viver o mito da origem do gaúcho se designando como Primeira Querência antes mesmo da criação deste símbolo, ocorrido no século XIX, com a literatura regionalista (CHAVES, 1991). 

Ao longo dos trabalhos de pesquisa observei as relações estabelecidas com o local do subterrâneo em São Nicolau, o turismo e a noção de patrimônio a ele subjacente, verificando três posições bem demarcadas que remetem aos tipos de relações estabelecidas com o passado.

Para a prefeitura do município, os túneis, se encontrados, corresponderiam a uma possibilidade de exploração turística diferenciada de São Nicolau praticamente igualando-a a São Miguel em termos de atrativos turísticos. Neste sentido, o incentivo do então prefeito e sua equipe pode ser pensado em termos de uma comemoração do passado missioneiro e uma vontade expressa de, através de sua atuação com relação ao passado, consolidar-se como figura pública indispensável ao desenvolvimento do município e, assim, garantir sua re-eleição. Trata-se, aqui, de refletir sobre um uso público do passado, conforme referem Jacques Revel e François (2001). Uma utilização do passado relativa à necessidade de construir uma imagem coerente e gratificante a partir da mobilização de recursos voltados para o passado com fins políticos.

A segunda hipótese de relação estabelecida com o passado nesta situação é a do acerto de contas, observada na vontade/temor de desenterrar tesouros, na profanação dos túmulos e destruição das placas, na ocupação dos espaços dos sítios e sua depredação, que entendo como uma repulsa quase ou mesmo visceral comprovada pela existência de fezes humanas no espaço das ruínas e de preservativos encontrados no subterrâneo de São Nicolau. Interpreto tais posturas como uma demarcação expressa da vontade de inversão do culto ao passado, assinalando a importância de um presente que se quer para além da memória das Missões Jesuítico-Guaranis e sua exaltação para fins turísticos.

A terceira hipótese de relação se dá através de uma postura individualmente estabelecida com o passado observável nos relatos que mencionam as visitas ao túnel quando crianças ou seu temor, demonstrando as ruínas das Missões como lugar de memória de seus habitantes e das visitações turísticas. Uma análise das três modalidades de relações estabelecidas com o passado demonstra que as mesmas não se excluem.

As relações estabelecidas com o passado missioneiro em São Nicolau demonstram que a postura de comemoração da administração municipal se desenrola em dialética com uma crítica a este passado, ambas referentes à história de vida de cada um de seus habitantes que se posicionam positiva ou negativamente em termos de sua patrimonialização e de seus usos.

O incessante trabalho da memória coletiva segue seu curso em São Nicolau na dialética destas relações. Ora pendendo para a comemoração do passado, transformada em patrimônio para ser visitado e homogeneamente turistificado, viabilizando economicamente a região no presente. Um turismo permeado pelas recusas dos habitantes locais em aceitar o estrangeiro e de se transformarem em exótico, mas que possibilita ao turista um lugar de memória para o seu retorno ao passado e seu crescimento pessoal. Ainda, um passado que se inscreve, sendo positiva ou negativamente significado na vida de cada um dos habitantes de São Nicolau, em suas histórias de vida.

Referências

Fontes Etnográficas

Etnografia Circuito Internacional das Missões, abril 2003.

Etnografia Caminho das Missões. Maio de 2003.

Etnografia sobre São Nicolau. Agosto-setembro de 2003.

Etnografia Projeto Rota Missões agosto-setembro 2003.

Etnografia Caminho de Santiago de Compostela, maio de 2004.

Etnografia visitas ao IPHAN, setembro-novembro 2005.

 

Fontes Documentais

Documentação sobre as Missões Jesuíticas. Consulta no arquivo do IPHAN, set-nov de 2005.

Programa de capacitação para a conservação, gestão e desenvolvimento sustentável das Missões Jesuíticas dos Guarani 2003-2005. Encarte e Cd. World Monuments Fund, ICOM e IPHAN.

 

Referências

AUGÉ, Marc. El viaje imposible: el turismo y sus imagines. Barcelona Gedisa, 1997. (Col. Antropologia/Etnografia. Série Cladema)

_____. Temps en ruines. Paris: Galilée, 2003.

BARRETTO, Margarita. O imprescindível aporte das Ciências Sociais para o planejameno e compreensão do turismo. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: UFRGS. IFCH. V. 9, n. 19, p. 15-30, 2003.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil/DIFEL, 1989. (Coleção memória e sociedade).

BRUIT, Héctor Hernán. Derrota e simulação: os índios e a conquista da América. RESGATE – Revista de cultura do Centro de Memória. Campinas: UNICAMP, n. 2, p. 9-19, 1991.

BRUM, Ceres Karam. Integração: uma categoria para estudar a atuação do padre Antonio Sepp nas Missões. In: QUEVEDO, Júlio. (Org.). Historiadores do novo século. São Paulo: Nacional, p. 63-77, 2001.

____. Relatório de consultoria antropológica para a prefeitura municipal de São Nicolau. São Nicolau, set. 2003a (documento não publicado).

____. Relatório de consultoria antropológica para o projeto Rota Missões SEBRAE. Caxias do Sul, set. 2003b (documento não publicado).

____. Esta terra tem dono. Uma análise antropológica de representações produzidas sobre o passado missioneiro no Rio Grande do Sul. Tese de doutorado em Antropologia Social PPGAS/UFRGS: Porto Alegre, jan. 2005.

CHAVES, Flávio Loureiro. História e literatura. Porto Alegre: EUFRGS, 1991.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo: USP, 1991.

CLASTRES, Pierre. A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios guaranis. Campinas: Papirus, 1990.

ENCARTE turístico argentino. Las Misiones Jesuíticas. San Ignácio Mini: informaciones Generales. Posadas, 2003.

FAGUNDES, Antonio A. Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2000.

FIGUEIREDO, Osório S. Lendas, causos e assombrações. São Gabriel, 2002.

FLORES, Moacyr. Colonialismo e missões jesuíticas. Porto Alegre: EST, 1983.

GADELHA, Regina A. F. (Org.) Missões Guarani: impacto na sociedade contemporânea. São Paulo: EDUC, 1999.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

GINSBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas implicações. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa/RJ.DIFEL, Bertrand Brasil, 1989.

__­­_.Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

GOMES, Roselene; QUEVEDO, Julio. São Nicolau. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2003.

GUTIÉRREZ, Ramón et alli. Manzana de las luces. Túneles de Buenos Aires. Buenos Aires, 1997.

HABERMAS, Jürgen. Écrits politiques. Paris: Champs/Flamarion, 1990.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HARTOG, François et REVEL, Jacques. Les usages politiques du passé. Paris: EHESS, 2001. (Collection Enquête 1)

JODELET, Denise. Les représentations sociales. Sciences Humaines, Paris n. 27 avril, 1993, p. 22-25.

KERN, Arno. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.

____. (Og.) Arqueologia histórica missioneira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

____. Ações evangelizadoras e culturais de missionários portugueses e espanhóis no Rio da Prata, nos séculos XVI, XVII e XVIII em territórios do sul do Brasil. In: Actas do congresso internacional de história “missionação portuuesa e encontro de culturas” Braga, v. II, 1993, p. 469-490.

____.A educação do outro: jesuítas e guaranis nas Missões coloniais platinas. In : Stephanou, Maria e Bastos, Maria Helena C. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005, v. 1, p. 108-120.

KREBS, Carlos Galvão. Tesouros e subterrâneos jesuíticos. Revista da Província de São Pedro, Porto Alegre, n. 12. 1948 (cd-room PUC-RS, 2002).

LA SALVIA, Fernando. O sítio urbano da missão de São Nicolau In: WEIMER Gunter. In: Urbanismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS, 1992.

____. A arqueologia nas Missões e uma perspectiva futura. In: Anais do V Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros. Sana Rosa: Dom Bosco, 1983. p. 207-219.

LÉVI-STRAUSS, Claude. L’identité. Paris: Grasset, 1977.

____. Antropologia Estrutural. 5 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. 7, 1996. (Coleção biblioteca tempo universitário)

LOPES NETO, João Simões. Lendas do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, [1913], 2000.

MACIEL, Maria Eunice. Memória, tradição e tradicionalismo no Rio Grande do Sul. In: BRESCIANI, Estela; NAXARA, Maria. (Orgs.). Memória e (res)sentimento; indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, p.239-267, 2001.

MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífico ocidental. [1917]. São Paulo: abril (coleção os pensadores).

MARCUS, George. Antropology on the move and Imagining the whole ethnography’s contemporany efforts to situate itself. In: Ethnography through thick and thin. Princeton: Princeton University, 1998.

MELIÁ, Bartomeu. Las reducciones jesuíticas del Paraguay; um espacio para uma utopia colonial. Estudios Paraguayos. Assunción, v. 6, n. 1, p. 187-227, 1978.

NUNES, Zeno Cardoso. Dicionário de regionalismo do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994.

OLIVEN, Ruben. A parte e o todo: a diversidade cultural no Brasil-nação. Petrópolis: Vozes, 1992.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Narrativas cruzadas. História, literatura e mito: Sepé Tiaraju das Missões. Torino, 2003. (Texto recebido por e-mail)

____et alli (org.) Pampa e cultura: de Fierro a Neto. Porto Alegre: EDIUFRGS/IEL, 2004.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, São Paulo: Vértice n. 3, p. 3-15, 1989.

QUEVEDO, Júlio. Missões: crise e redefinição. São Paulo: Ática, 1993.

____.Guerreiros e jesuítas na utopia do Prata. São Paulo: EDUSC, 2000.

RIBEIRO, Paula Simon. Folclore: similaridades nos países do Mercosul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2002.

RICOEUR, Paul. Temps et récit 3 Le temps raconté. Paris: Seuil, 1985.

RILLO, Apparício Silva. Populário São-borgense. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991.

ROBIN, Régine. La mémoire saturée. Paris: Stock, 2003.

SAHINS, Marshall. Ilhas da História. Rio de Janeiro: Jorge Zaharr, 1990.

SAINT-HILAIRE, Auguste Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821). Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

SANTOS, Pedro Marques dos. São Nicolau de Piratini. A Notícia: São Luiz Gonzaga,1985.

SCHALEMBERGER, Erneldo. A integração do prata no sistema colonial: colonialismo interno e missões jesuíticas do Guairá. Toledo: Ed. Toledo, 1997.

SEPP, Pe. Antonio.  Viagens às Missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. [1710] Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre; ERUS, 1979.

SIMON, Mário. Os sete Povos das Missões: trágica experiência. Santo Ângelo,1984.

SOUZA, José Otávio Catafesto de. Aos “Fantasmas nas Brenhas”: etnografia, invisibilidade e etnicidade de alteridades originárias no sul do Brasil (Rio Grande do Sul). Tese de doutorado. PPGAS/UFRGS. Porto Alegre, 1998.

SANTANA TALAVERA, Agustín. Turismo cultural, culturas turísticas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 9, n 19, 2003. p. 31-58.

THIESSE, Anne Marie. Le mouvement literaire régionaliste de la langue française entre la Belle Époque et la Liberation. Paris: PUF, 1991.

____.Ils apprenaient la France: l’exaltation des régions dans le discours patriotique. Paris: Maison des sciences de l’homme, 1997.

TODOROV, Tzvetan. Memória do mal: tentação do bem. São Paulo: ARX, 2002.

TORRES, Luiz Henrique. Historiografia sul-riograndense: o lugar das Missões Jesuítuco-guaranis na formação histórica do Rio Grande do Sul (1819-1975). 1996, Tese de Doutorado em História. Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1996.



[1] Doutora em Antropologia Social pela UFRGS. Professora adjunta do departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM/RS. cereskb@erra.com.br